03 Jan 2021  |   04:55am IST

ENCONTROS COM DEUS

ENCONTROS COM DEUS

Valentino Viegas

Quando em Goa nos princípios deste ano foi decretado o confinamento obrigatório, por causa da Covid-19, um amigo de longa data contou-me, emocionado, uma história estranha e perturbante, acontecida na praia de Sernabatim.

Dizia-me em conversa telefónica que, apesar da sua provecta idade e ser frequentador assíduo daquela praia, dotada de uma beleza sublime, era a primeira vez na vida que se encontrava absolutamente sozinho.

Olhava para a imensidão do areal, a perder de vista, pestanejava para ter a certeza de não estar a imaginar cenas irreais e, por mais que procurasse, não conseguia vislumbrar qualquer figura humana na costa deserta.

Em circunstâncias normais, embora longe do apogeu da época turística, os veraneantes locais, do resto da Índia e estrangeiros estariam a desfrutar da formosura deste litoral encantador, uns passeando pelo chão de areia fina, outros em correrias desencontradas, terceiros a banharem-se nas águas transparentes do mar sereno, com temperatura cálida e convidativa, e ainda outros a tirarem fotografias, tentando capturar as imagens do pôr-do-sol distante, prestes a ser engolido pelas profundezas das águas oceânicas, ou simplesmente a desfrutarem a doçura da ambiência envolvente.

Nessa tarde inesquecível, os habituais salva-vidas, os barcos de pesca costeira, os pescadores à linha e até os cães vadios estavam ausentes. 

Encontrava-se só e nem sequer tinha a companhia habitual da sua querida companheira.

Ao dar conta da sua solidão, uma forte sensação de medo deixou-o em pânico e completamente fora de si. A consciência acusatória, vinda do íntimo, irrompeu em incriminações ininterruptas: já tens idade para ter juízo, devias ter vergonha de ti próprio. Quando todos os teus concidadãos cumprem as regras instituídas pelos governantes, apenas tu, em vez de dares o exemplo, acatando as normas, egoisticamente, afrontas os poderes estabelecidos, actuas como uma criança rebelde e és incapaz de imaginar o mal que praticas.

Esse amigo, antes de pegar no volante do carro, raciocinou de forma irresponsável, como fazem os imbecis e oportunistas, porquanto pensou que, se ninguém andasse na rua, seria o único e, assim, jamais seria contagiado pela pandemia, ou transmitiria a doença a terceiros, caso fosse portador dela.

Esqueceu-se de fazer um raciocínio simples e elementar: se todas as pessoas pensassem da mesma forma e tivessem idêntico comportamento, naquele preciso momento, estaria rodeado de uma multidão de pessoas como ele. 

Assustado com o sentimento de culpa, assim que tapou as orelhas com as duas mãos, por não querer ouvir a torrente de recriminações, qual delas mais horrível, uma voz estranha, vinda não sabe de onde, sussurrou aos seus ouvidos:

- Acalma-te, não foste tu que decidiste vir até à praia, fui Eu que te convoquei para estares aqui sozinho.

Quando escutou aquela voz, uma onda de prazer e alegria irrompeu por todo o seu ser. O medo evaporou-se de súbito e, no seu lugar, sentiu uma paz interior indescritível. 

Disse-me que não queria ser blasfemo mas, naqueles memoráveis momentos de pura felicidade, ao continuar a observar as lindas formações de nuvens esbranquiçadas e brilhantes, a movimentarem-se com placidez no majestoso céu azul, sentiu uma sensação de bem-estar que irmanava na perfeição com o doce murmurar regular das ondas.

Como eu andava intrigado e curioso, quando há dias me encontrei com ele, em Portugal, perguntei-lhe se o acontecimento estranho de Sernabatim, em tempos descrito telefonicamente, havia sido o primeiro e único na sua vida.

Qual não foi a minha surpresa quando me descreveu outros dois, um tido lugar há quase meio século e outro recentemente.

Disse-me que, estando a trabalhar no sudoeste da Ásia, acompanhado de dois colegas e de um guia, fez uma expedição na bacia do rio Pahang, na Malásia.

No percurso, árvores gigantescas, que bordejavam as margens, de tão compactas e frondosas, formavam uma autêntica muralha impenetrável de cor verde escura.

O silêncio tumular que imperava, de vez em quando, era quebrado pelo grito estridente das aves de beleza ofuscante, porte majestoso e tamanho descomunal, cujo robusto bico de mais de vinte centímetros de comprimento, deixava severos avisos aos intrusos, ao exibirem do alto dos ramos das árvores, ostensivos atributos físicos e capacidades belicosas, como guardiães dos céus da floresta.

No segundo dia, quando a força dos remos fazia deslizar o barco por um dos afluentes do rio, teve a nítida sensação de ver algumas árvores arquearem os troncos mais altos e debruçarem-se sobre o barquinho como quem pretende saudar e dar as boas-vindas.

Sentindo estar a comunicar com a natureza, pediu-lhes que repetissem o mesmo sinal caso achassem que seria feliz quando regressasse à Europa depois de terminar o seu contrato de trabalho.

Se foi o vento, que naquele momento soprou sobre o topo das árvores, ou foram elas que escutaram o seu pedido, não sabe, o certo é que, acto contínuo, algumas árvores curvaram-se, uma após outra, respondendo afirmativamente.

Quando me descreveu o segundo evento, embora procurasse disfarçar, notei que tremia.

Contou-me que, estando uma manhã esplêndida, abrilhantada de céu azul e limpo, subitamente, vinda do mar, observou, na mesma praia de Sernabatim, uma imensa formação compacta de nuvens negras como o carvão, aproximando-se com rapidez e ameaçadoramente na sua direcção, tendo detrás delas um lindo e fulgente arco-íris. 

Quando nessa tarde se dirigia de carro a Margão e, devido ao intenso tráfego, ficou parado por baixo de uma ponte, construída exclusivamente para a circulação dos comboios, passou um comboio de mercadorias carregado de carvão, com várias coberturas de plástico soltas. Assim que começou a tossir, por se ver obrigado a respirar o pó, muito fino, espalhado pela passagem do comboio, uma voz, vinda não se sabe de onde diz-lhe de uma forma peremptória:

- Luta para impedir a destruição de Goa. 

Ao ver, em simultâneo, a imagem do arco-íris à sua frente sente-se tocado e abençoado, pois acreditou que Deus lhe enviara um sinal de esperança na vitória de luta que desejava empreender contra os destruidores da terra de seu nascimento. Só desperta do entorpecimento ao ouvir as buzinas dos carros da retaguarda.

A realidade, os sonhos e a capacidade imaginativa são intrínsecos à natureza humana. Todos temos o direito e liberdade de nos projectarmos até ao infinito!


IDhar UDHAR

Iddhar Udhar