05 Dec 2021  |   06:06am IST

Histórias da imprensa Goesa: O Anglo-Lusitano (1886-1955)

Histórias da imprensa Goesa:  O Anglo-Lusitano (1886-1955)

Adelaide Vieira Machado

 Editado em português e inglês, a partir de Bombaim, este jornal católico goês iniciou a publicação no século 19, atribuindo-se duas missões principais: 1 - Defender o direito de Padroado da monarquia portuguesa, isto é, o direito dos reis de Portugal nomearem os bispos, contra a expansão da influência da Congregação missionária da Cúria Romana, Propaganda Fide, criada em 1622 no enquadramento das guerras entre trono e altar; 2 - Ser uma frente aberta em defesa da comunidade goesa em Bombaim. 

Ao mesmo tempo que, como jornal católico, lutava pela união de todos os católicos daquela cidade, não se absteve nunca, segundo a tradição implantada pelo seu fundador, Leandro Mascarenhas, da análise e comentário crítico à situação política goesa e ao governo colonial local e central. Neste sentido, o periódico reagiu a diversos eventos: Ao fim do Padroado português na Índia, pela continuação do qual o jornal se empenhara directamente, selado pelo governo de Lisboa com a Santa Sé, retirando importância à arquidiocese de Goa, e à legislação imperial saída dos princípios segregadores do Acto Colonial.

A antiga Bombaim, atual Mumbai, era um lugar de conexões cosmopolitas, cuja história a partir do século 16, se dividiu entre impérios coloniais, o português e o britânico, sobrepondo-se, conectando-se ou correndo em paralelo com várias outras histórias, incluindo a das religiões e das culturas que lhes estavam adscritas. No século 16 a posição dos portugueses no xadrez político da região passava pela aliança com os hindus contra os muçulmanos; como parte dessa estratégia aquela região foi cedida aos portugueses como contrapartida de guerra, pelo sultanado de Guzarate no século 16, em 1534. Já no século 17 passou para o império britânico, como dote de casamento de uma princesa portuguesa Catarina de Bragança com o rei católico inglês Carlos II (Stuart), em 1661. Entretanto, os territórios a norte de Bombaim, como Salsete, permaneceram no domínio português até meados do século 18, altura em que todo esse território foi tomado pelo império Marata em 1740, e trinta anos depois pelos ingleses que dominaram toda a região a partir de 1770. Daqui decorrente, houve uma comunidade de católicos que permaneceu em Bombaim, continuou a autodenominar-se como comunidade portuguesa, e a ser conhecida com tal. Por outro lado, a corrente migratória goesa foi, também ela, formando uma comunidade e reclamando para si o catolicismo e a portugalidade que lhe estava inerente. No entanto, como nos diz Paulo Varela Gomes a síntese cultural que se foi construindo: “Resultou de uma tentativa de conciliação entre modernidade, inglesismo e tradição a que as circunstâncias históricas forçaram tanto os ‘Bombay Portuguese’ como os próprios goeses. O interior caiado de branco da Glória de Mazagão (igreja), tradicional e indo-português, contrabalança o seu afirmativo exterior gótico e inglês; ambos se leem como uma síntese católica moderna que procura recalcar a cisão Padroado/Propaganda e a diferença nacional entre Goa e o Raj.” (Gomes:600)

São conhecidas algumas disputas, com a tentativa de se desacreditarem mutuamente, ao mesmo tempo que tentavam assumir o controle da comunidade católica, e se na questão do Padroado versus Propaganda Fide a maioria do east-indians pendeu para o primeiro, a verdade é que o inglesamento das elites foi progressivamente criando zonas de permeabilidade que, sem que as respetivas origens fossem esquecidas, tornaram possível uma conciliação de interesses em termos políticos e culturais, sobretudo a partir do fim do Padroado em Bombaim, em 1928.

Assim, ao longo do século 20 várias transversalidades vieram pôr estas duas comunidades em comunicação, e os apelos à unidade cristã perpassaram as páginas de OAnglo-Lusitano, que se assumiu sempre como um mediador entre elas. Também a unidade com a comunidade hindu vinda de Goa, no que respeitou aos protestos contra a legislação colonial portuguesa, conheceu momentos de luta, organizada pela intelectualidade goesa que tradicionalmente escolhia Bombaim como lugar de prolongamento dos estudos superiores ou projeção de carreira, mas também, como lugar de exílio. Essa porosidade estendia-se às classes mais baixas, terminologia sociológica que aos poucos se compaginou primeiro, e emancipou-se depois, daquela que se referia às castas, isto é, sem se excluírem, foram criando as suas funcionalidades próprias. Entre os goeses católicos e hindus de Bombaim, com lugares cimeiros no funcionalismo, no clero, na universidade, na medicina, ou na justiça e advocacia existia uma ligação cultural e política que era exibida na imprensa valorizando com esses exemplos a identidade goesa, ao mesmo tempo que na maioria dos casos, os apelidos portugueses se miscigenavam, também, em alguns casos, na designação de east indians.

Outro tanto se passou, no que respeitava às classes migrantes mais baixas que foram encontrando, nas associações mútuas, nos chamados Cuds ou Clubs, que recebiam e apoiavam os mais desfavorecidos vindos de Goa, e as razões da solidariedade funcionavam como base para a consciência de classe. O impacto do Acto Colonial teve como consequência, o mérito de estabelecer a conexão entre estas duas realidades, em movimentos de contestação que embandeiravam desde a exigência do respeito pela dignidade humana, ao direito de cidadania plena e à igualdade e emancipação dos goeses, e de Goa. Conexão essa, entendida pelos intelectuais e divulgada pela imprensa correspondente.

O Anglo-Lusitano, ao mesmo tempo que nos narrava o contexto da sua existência e raio de ação, demonstrava que estava bem enquadrado nesta realidade intelectual engajada. O jornal apresentava-se, não só como o defensor da comunidade Goesa como um todo em Bombaim, mas ainda, como um foco de união dos católicos da região. “O Anglo-Lusitanolamentou repetidamente a divisão da comunidade em pequenos grupos, cada um separado em compartimentos estanques. O Anglo-Lusitano defende a fusão dos vários grupos numa unidade, pois que intimamente ligados pelos laços de uma religião comum, ideais comuns e interesses comuns.” (7 Julho 1934:12)

Os festejos do 48º aniversário de O Anglo-Lusitano, em 1934, foram mais um exemplo de práticas democráticas dado pelos editores do jornal com um número de jornal aberto às principais as correntes culturais e políticas de Goa. Embora a maioria da corrente editorial, apelasse ao espírito republicano democrático-liberal e à autonomia perante o governo português, são apresentadas outras linhas de pensamento que apontavam no sentido de se acompanhar com atenção o caminho seguido pelos freedom fighters indianos, e finalmente, aquela onde se declarava que o único caminho para Goa era a futura União Indiana independente. Assim podemos acompanhar artigos desde os mais moderados como Amadeu Prazeres da Costa e Francisco Correia Afonso a Luís Meneses Bragança democrata em rutura com o governo de Lisboa e Tristão Bragança da Cunha grande defensor da integração de Goa enquanto estado, na Índia de Gandhi e Tagore.

O direito à cultura própria aparece-nos como um direito político, em ligação com o direito de cidadania integral e democrático, cuja ideia de igualdade se apresentava respeitando a diversidade de tempos e lugares, por contraste com aquela cidadania de segunda que era oferecida aos cidadãos dos impérios pelo Acto Colonial. A originalidade da identidade de Goa foi apresentada, também, como parte integrante da cultura Indo-Portuguesa, a literatura e a Imprensa, partindo de um tronco em comum foram tratadas como meios de superação e ressurgimento cultural e nacional, em complemento, e através do uso das línguas vernáculas. A imprensa e o estilo jornalístico eram já o reflexo de uma modernidade globalizada que da literatura fazia o veículo de apelo às mudanças sociais, ao denunciar através da publicação do texto literário na imprensa, os dramas de género e o cruzamento com as limitações que as castas e as classes iam introduzindo. Neste enquadramento, o intelectual era definido como aquele que ligava cultura e política, assumindo cada vez mais, o papel de mediador entre o povo e o poder.

Durante a sua longa duração O Anglo-Lusitano nunca abandonou a sua crença nem a defesa dos seus princípios.

Referências: 

(1) Lobo, Sandra Ataíde. “The O Anglo-Lusitano: in search of identity” in Hispanic Horizon: Journal of the Centre of Spanish, Portuguese, Italian & Latin American Studies.New Delhi, Jawarharlal Nehru, Vol. 32(2016) 45-64

(2) Gomes, Paulo Varela. “Bombay Portuguese: ser ou não ser português em Bombaim no século XIX”, Revista de História das Ideias, Imprensa da Universidade de Coimbra, vol. 28 (2007) 567-611

(3) Machado, Adelaide Vieira. “Uma leitura Goesa do impacto cultural do Ato Colonial: Introduzindo intelectuais e imprensa periódica através do Anglo-Lusitano de 7 de julho de 1934”, Revista de História das Ideias, Imprensa da Universidade de Coimbra, vol. 38. 2ª Série (2020) 119-153

(4) Coleção do Anglo-Lusitano no Xavier Center of Historical Research em Alto de Porvorim,Goa

IDhar UDHAR

Iddhar Udhar