28 Feb 2021  |   05:06am IST

QUARESMA EM GOA: DEVOÇÕES E TRADIÇÕES

QUARESMA EM GOA: DEVOÇÕES E TRADIÇÕES

Pe. Joaquim Loiola Pereira

A Quaresma é uma quadra penitencial instituída pela Igreja desde os primeiros séculos, a fim de que os cristãos possam preparar-se para a Páscoa, a Festa da Ressurreição de Cristo, que é o ponto fulcral e mais importante da nossa Fé. Através dos séculos, esta preparação, que é geralmente feita por meio de oração, penitência (jejum, abstinência de carne, mortificação) e caridade, teve várias formas, cumpridas com maior ou menor rigor, segundo as circunstâncias do tempo ou do lugar.

Há seis décadas, quando eu era um petiz de palmo e meio, a minha piedosa mãe proibia-me cantar ou assobiar durante a Semana Santa, pois eram “dias de máxima penitência,” ditava ela a um miudinho para quem o cantarolar foi sempre uma espécie de oxigénio! Até à data, não me lembro de ter feito penitência mais dura! Hoje, porém, os dias de jejum prescritos pela lei estão reduzidos apenas a dois e os de abstinência às sextas-feiras só. E … pode-se cantarolar durante a Semana Santa.

Entre as devoções quaresmais, a Via Sacra ocupava um lugar proeminente. Na Quarta-feira de Cinzas e em todas as sextas-feiras a seguir, a minha mãe levava-me à capela vizinha, hoje igreja, a tomar parte na Via Sacra, quando o padre, ano após ano, recitava as mesmas orações, religiosamente lidas de um manual, enquanto eu ficava a contar as lagartixas na parede. Com o passar dos anos, porém, a Via Sacra foi tomando formas mais agradáveis, com sacerdotes, na sua maioria jovens, a dar amplo azo à sua criatividade pastoral e a celebrar a Via Sacra de formas diversas, como em diálogo ou ainda ao vivo, encorajando os fiéis a acompanhar a “acção” ao longo de um caminho um tanto tortuoso, que rematava com a última estação – ‘A Sepultura de Jesus’ – e, em poucos casos, ainda com uma décima quinta estação: ‘A Ressurreição de Cristo!’

Veio a vivência eclesial das pequenas comunidades cristãs e a Via Sacra começou a ser celebrada pelos trilhos das aldeias, com estações em cada casa: é uma ‘novidade’ que continua a calar no ânimo e fomentar o espírito de comunidade bem como a fraternidade em grupos vivenciais mais íntimos. Este ano temos uma outra novidade: considerando as restrições impostas pela pandemia vigente e a impossibilidade de todos os paroquianos poderem participar na Via Sacra paroquial, as autoridades diocesanas concederam que a Via Sacra pudesse ser celebrada ainda nos lares, membros da família fazendo as estações em diversos compartimentos da casa e haurindo os mesmos frutos espirituais. Esta ‘evolução’ da Via Sacra assinala um feliz processo transformativo de uma Igreja-massa em uma Igreja-comunidade ou Igreja-família.

Entre as tradições quaresmais em Goa, há que se destacar os Santos Passos, herança que herdámos directamente de Portugal, onde eles ainda são celebrados com solenidade e pompa, embora em poucos lugares. Em Goa, ao contrário, eles têm lugar até hoje em quase todas as paróquias. Em Tissuari e Bardês, eles são celebrados em cada Domingo de Quaresma, enquanto que ao sul do Zuari, em qualquer um desses Domingos. Não costuma faltar a Procissão do Senhor com a Cruz às Costas, seguido do andor da Mater Dolorosa e que inclue também um “descanso,” com o Canto da Verónica. Outros ‘Passos’ estatutivos são o Descendimento da Cruz e a Procissão do Senhor Morto na Sexta-feira Santa. 

Um elemento indispensável que acompanhava estes Santos Passos até meio século atrás era o canto dos Motetes. Cantados por quatro homens a quatro vozes (Tiple, Alto, Tenor e Baixo), eles eram acompanhados de dois violinos, dois clarinetes e um contrabaixo (rabecão). Ao princípio, os motetes eram cantados só em Latim; aos poucos, começam a aparecer também motetes em Concani. Tanto uns como os outros, causava uma sensação ouvi-los, pois faziam vibrar o coração, fibra por fibra! Aquele som seco e arrepiante de uma matraca, aquele vagaroso descerrar do gigantesco pano negro que cobria toda a capela-mor, seguido da apresentação do ‘Passo’ – o Ecce Homo – produzia suspiros bastante audíveis daquela população toda a apinhar a igreja. Seguia então o sermão, outro elemento indispensável do dia. Nesse dia, de Santos Passos ou de Sexta-feira Santa, o pregador podia sermonizar por mais de meia hora, que todos o perdoavam. A gente ia lá predisposta para um tempo demorado de reflexão, de bater no peito, de sussurrar mea culpa e de ouvir os motetes, cada um deles uma cantilena que durava quinze minutos ou mais … e eles eram alguns! A um tempo em que todos menos três em cada cem católicos eram analfabetos, este conjunto todo fazia bem à alma e servia de salutar catequese sobre os sagrados mistérios da nossa fé, tal como os incomparáveis mosaicos e telas que adornam as paredes das belíssimas catedrais renascentistas da Europa. Hoje em dia, os sermões tornaram-se mais breves e, o que é de mais lamentar, desapareceram os clarinetes e os rabecões; e quando faltem violinos, os teclados electrónicos prestam pronto soccorro aos coristas, que preferem cantar outros cânticos quaresmais, mais modernos, que, diga-se a verdade, são mais ricos em significado. Estamos, portanto, perante a morte iminente do tradicional Motete Quaresmal. Estou enxergando um futuro, não muito distante, em que o Motete será celebrado só no palco, como património cultural imaterial, tal como está a dar-se com o Mandó.

Antes de terminar, gostaria de me referir a uma verdadeira novidade que passou a fazer parte das tradições quaresmais em Goa desde há três anos: é o Caminho do Peregrino ou a “Walking Pilgrimage” ou ainda a “Bhavarthachi Yatra.” Fruto da reflexão do nosso Arcebispo-Patriarca, que está sempre a pensar no próximo projecto pastoral, esta peregrinação, para a qual está fixo o Primeiro Domingo de Quaresma, atraíu, no primeiro e no segundo ano, mais de 25 mil participantes, que vieram caminhando de várias direções e convergiram para as ruínas da antiga igreja de Sancoale, que fora frequentada, há mais de três séculos e meio, pelo Padroeiro da nossa Arquidiocese, São José Vás. Ali, acompanhados de cerca de duzentos sacerdotes e sob a presidência do Arcebispo, os fiéis tomaram parte, com muita devoção, em uma Missa Penitencial. Fiz esta caminhada o ano passado, por três horas apenas, mas voltei espiritualmente (e cabalmente) refeito, alegre por termos agora em Goa a nossa própria versão do Camiño de Santiago.

E a Igreja de Goa continua em marcha …


IDhar UDHAR

Idhar Udhar