14 Feb 2021  |   05:35am IST

VIVA CARNAVAL!

VIVA CARNAVAL!

Maria do Céu Barreto

iva Carnaval! Viva Carnaval! Jovens vestidos de roupas coloridas e caras cobertas de pó, soltavam gritos de alegria nas ruelas das aldeias de Goa. Munidos de pistolas com água,  encharcavam os passantes. Cocotes voavam pelos ares e iam a cair na cabeça do coitado que lá por perto passava. Reclamações? Ninguém se lembrava disso. Era a praxe do Carnaval de outrora, três dias de liberdade, durante os quais era permitido fazer-se de tudo ou de quase tudo, onde os costumes e  preconceitos eram esquecidos, para se serem lembrados somente na quarta-feira das cinzas.

O Carnaval era de facto muito mais divertido na minha juventude. Quem não se recorda das ‘batalhas’ simuladas entre a rapaziada de dois bairos vizinhos ou entre grupos amigos onde a arma eram os cocotes? Os cocotes eram pacotinhos abarrotados com cal? (chedd) e farinha. Eram feitos em casa de uma forma muito artesenal. Comprava-se papel colorido, aliás vários de cores diferentes, ia-se em busca do chedd que depois era misturado com farinha. O bambu era indispensável, os papéis cortados aos quadrados eram enrolados ao bambu e colados com uma cola caseira feita com arroz cosido. Uma vez secos, eles eram retirados cuidadosamente do bambu e  recheados bem apertados com a mistura já preparada. Só faltava agora colar a extremidade aberta com a cola de arroz e o cocote estava pronto. Para além de uns trezentos cocotes que cada grupo fazia, havia também a necessidade de cada ‘soldado’ estar munido de um escudo, feito com cartolina grossa para aparar os cocotes dos adversários. Já prontos para a grande batalha, marcava-se o dia. Em Panjim o combate era entre Fontainhas e Campal. No dia designado para a batalha, os jovens, tanto nativos como mestiços, levavam na mão esquerda o escudo e o saquinho com cocotes pendurado na mão direita. Acabada a batalha os adversários ficavam brancos, assim como as ruas das cidades e aldeias. A inimizade desaparecia e a amizade retornava. 

Os adultos também não ficavam para trás; caracterizados burlescamente em figuras representativas dos meios sociais ou politicos, visitavam casas amigas gozando as autoridades e explicando em linguagem satírica os problemas das personagem que representavam. Era uma reversão geral das regras e normas do dia a dia. A essência do Carnaval de outrora era levar alegria para todas as pessoas. 

Em Panjim, uma semana antes do Carnaval organizavam-se ‘assaltos’, famosos nos clubes e nos bairros das Fontainhas e Campal. Os jovens do bairro ‘assaltavam’ casas das famílias amigas e cobriam os residentes com talco e água colorida. Era uma gritaria onde todos se divertiam. No fim do assalto, os ‘assaltantes’ eram ainda recompensados com petiscos e refrescos que já se encontravam na mesa posta. Muitas vezes, graças ao ‘assalto’, muitos namoros iniciavam-se, e alguns até terminavam em casamento. Nos clubes juntavam-se familias e além de assaltos havia também recitais apreciados por todos. Na capital e noutros centros urbanos realizavam-se bailes, onde era obrigatório o traje carnavalesco. Durante três dias brincava-se e dançava-se. Nos clubes, na manhã da quarta-feira, quando Johnson  cantava o seu habitual Good Morning, sabia-se que o Carnaval tinha chegado ao fim, para tudo voltar a recomeçar no ano seguinte. Tristes e cabisbaixos, os dançarinos deixavam os salões. Alguns ainda iam à missa onde dormitavam sob os olhares fulminantes do padre e das beatas; outros marchavam para o Tató para se redimirem com um bhaji-puri.

Enquanto no norte, uma das formas de entretenimento era o Zagôr, onde se cantava ao som da flauta, do gumott e dos címbalos; a atuaçáo era pouca. Nas aldeias do Sul de Goa, a alma da celebração era o tradicional Khell, onde pequenos grupos se reuniam e atuavam ao ar livre. O enredo dialogado, que depois era cantado, consistia numa história simples, mas completa, com o começo e fim. Os instrumentos musicais que acompanhavam as canções, eram um gumott grande, este também usado para anunciar a chegada do khell, um gumott pequeno, a trombeta e a clarineta. A primeira apresentação era obrigatoriamene em frente da casa do Regedor, a autoridade da aldeia, a seguir  nos pátios das casas de quem os convidava, geralmente os batkars. O povo que se juntava à volta dos participantes, desfrutava e participava também no tão ansiosamente esperado espectáculo e para o qual não tinham que pagar. Quando o khell era representado no palco, o que acontecia raramente, levava o nome de khell tiatr. Imitando os do Sul, em Panjim, os jovens dos arredores da cidade, também tinham o seu khell ao qual os citadinos chamavam brincos. Os participantes punham um lençol no chão e representavam. Onde se teria então originado esta festividade por todos tão almejada? Acredita-se que tenha surgido na Grécia antiga por volta do ano 520 a.C., onde os gregos se reuniam em homenagem ao Deus Dionísio, o Deus de vinho, e que coincidia com a chegada da Primavera. Depois dos gregos, os romanos também tinham as suas Saturnálias, festas em honra de Saturno, que era quando começava o novo ciclo da natureza. Essas festas eram acompanhadas de muito vinho e carne. As pessoas comiam, bebiam, divertiam ~se e usavam máscaras. Dizem que foi lá que começou o uso das máscaras, que mais tarde se aprimorou no carnaval da Veneza, na época considerado o mais importante e famoso de toda a Europa. As pessoas, independente do seu estatuto social queriam divertir-se sem quererem ser identificadas. Eram as máscaras que permitiam as classes mais altas a se misturarem com o povo nos festejos das ruas. 

Os termos Carnaval ou o Entrudo, só aparecem com o advento da Cristandade. A palavra Carnaval, que deriva do latim carnem levare ou carnis levale, significa abstenção da carne. O Entrudo que vem do latim introitus, significa a entrada ou o início da Quaresma. Geralmente as duas celebrações são consideradas sinónimas. No entanto existe uma pequena diferença entre as duas. O Entrudo era uma festa popular, que basicamente consistia em brincadeiras, como sujar e molhar as pessoas com água, farinha, etc. Gradualmente o Entrudo foi dando lugar ao Carnaval com bailes e desfiles glamarosos, onde os menos favorecidos já não tinham condições de participar. 

O Carnaval chegou a Goa e ao Brasil trazido pelos Portugueses. Inflenciados pelas festas carnavalescas que aconteciam na Europa onde os carnavalescos usavam máscaras e saiam pelas ruas comemorando, os portugueses do ultramar, especialmente no Brasil, começaram a imitá-los. As pessoas decoravam os carros, fantasiavam-se e, em grupos, desfilavam pelas ruas das cidades, preparando assim o terreno para futuros carros alegóricos. A partir desse período, já no século XX, os primeiros blocos carnavalescos foram criados e os famosos cortejos de carros alegóricos   popularizaram-se.

Depois da abolição da escravatura, um grande número de população negra veio para o Rio de Janeiro à procura de emprego e foi viver nos bairros mais pobres da cidade, hoje denominados favelas, por falta de meios pra um lugar melhor. Era lá que eles se reuniam e procuravam-se divertir na época de Carnaval. Grandes casas comerciais começaram a patrociná-los. Os modestos carros decorados deram lugar a carros alegóricos luxuosos com as mulheres glamarosas e sensuais, dançando no topo desses carros ao som de um novo ritmo afro-brasileiro criado para aquela ocasião. A canção era o Samba, hoje reconhecido nacional e internacionalmente como um dos símbolos culturais do país, originado nas comunidades afro-brasileiras.

Escolas de samba, cada uma com centenas de membros, preparam-se durante o ano inteiro cosendo roupas maravilhosas, estudando e ensaiando o samba a ser apresentado no grandioso e luxuoso desfile das escolas, num espaço especialmente criado para esse evento, o Sambódramo. O Carnaval institucionalizou-se e perdeu a simplicidade e a espontaneadade do Entrudo. O Carnaval que atualmente celebramos em Goa, é uma pálida imitação do Carnaval do Brasil.


IDhar UDHAR

Idhar Udhar